Protocolado PL que institui Política Municipal para População Migrante em Uberlândia
Publicado: 08/09/2023 - 09:47
Última modificação: 22/09/2023 - 13:48
Foi protocolado na semana do dia 04 de setembro de 2023, em Uberlândia MG, o Projeto de Lei 1858/2023, que Institui a Política Municipal para a População Migrante e dispõe o Plano Municipal de Políticas para a População Migrante, Refugiada, Apátrida e Retornada, além de dar outras providências.
O intuito principal da política é implementar de forma transversal às políticas e serviços públicos o acesso dos migrantes aos direitos e garantias sociais, impedir a violação desses direitos e combater a xenofobia e o racismo, além do fomento à participação social e coordenação de ações com a sociedade civil. Outro ponto importante do PL é a atenção especial dada aos migrantes em situação de vulnerabilidade, como os refugiados, pretendendo promover a especialização do atendimento público a essa população.
Considerando que Uberlândia é a segunda maior cidade do estado de Minas Gerais e tem uma população migrante considerável, o PL 1858/2023 se mostra de extrema importância para atender a uma parcela da população que, não raro, encontra-se em situação de vulnerabilidade social. O protocolo do PL 1858/2023 é um primeiro passo para que o município de Uberlândia seja mais ativo na integração e amparo dos migrantes que acolhe.
A Cátedra Sergio Vieira de Mello da UFU destaca a participação da coordenadora, Profa Marrielle Maia (PPGRI-UFU), da refugiada Ehvis Mitchel, das ONGs Trabalho de Apoio a Migrantes Internacionais e ONG Refugiados Udi, e de outros refugiados e beneficiários de visto humanitário, na plenária que abriu os debates sobre a questão e reafirma a importância da construção de uma política pública municipal que tem como protagonistas os indivíduos em situação de migração.
Para aprofundar o assunto, conversamos com a Profa Marrielle Maia (PPGRI-UFU), coordenadora da CSVM UFU, que gentilmente concedeu a entrevista no dia 22 de setembro de 2023:
Qual é o objetivo principal por trás da criação do Projeto de Lei 1858/2023 e da Política Municipal para a População Migrante em Uberlândia?
Marrielle Maia: Antes de responder à pergunta, é importante ressaltar que o Brasil possui uma legislação sobre o acolhimento da população imigrante, refugiada e apátrida. Nas últimas duas décadas tivemos a aprovação de duas leis federais importantes, a Lei do Refúgio em 1997 e a Lei das Migrações de 2017. Ambas as normativas são relevantes porque permitiram a superação de uma abordagem securitizada do país sobre o tema para uma abordagem de direitos. Não obstante, o país não avançou na aprovação de uma política pública nacional para o acolhimento de imigrantes internacionais, refugiados e apátridas conforme o previsto no artigo 120 da Lei 13.445/2017. Foi somente neste ano de 2023 que o governo federal criou grupos de trabalho para redigir uma proposta.
Algumas localidades, reconheceram a necessidade de adotar uma abordagem específica para os imigrantes internacionais em suas políticas públicas. A experiência mais antiga e mais exitosa é a da cidade de São Paulo. É importante reconhecer que os problemas concretos do acolhimento de imigrantes em situação de vulnerabilidade ocorrem onde eles residem. Assim, a realização dos direitos previstos na legislação federal depende, em grande medida, das condições proporcionadas pelos estados federados e municípios, especialmente nas políticas de assistência social, educação, saúde e desenvolvimento econômico.
O Projeto de Lei 1.858/2023 é relevante porque tem o potencial de promover um debate público, com a participação social na criação de uma lei municipal que contemple políticas específicas de acolhimento e integração local de imigrantes internacionais, refugiados e apátridas.
A Lei também prevê a atenção às pessoas retornadas, que são aquelas que voltam ao seu país de nacionalidade ou cidadania após terem sido imigrantes internacionais. A preocupação especial está nos retornados em situação de vulnerabilidade pelas mais diversas razões, como aqueles que não conseguiram regularização de sua situação no exterior, ou em casos mais graves foram vítimas de organizações criminosas ou mesmo tráfico humano.
Quais foram as contribuições da CSVM UFU na elaboração deste projeto e nas discussões sobre a questão migratória?
Marrielle Maia: Desde a sua criação, em outubro de 2020, a CSVM tem feito um importante trabalho de advocacia na promoção de políticas públicas de imigração. Participamos ativamente da construção do 1º Plano Estadual de Políticas Públicas para Imigrantes, Refugiados, Apátridas e Pessoas Retornadas do Estado de Minas Gerais.
No ano de 2022 fomos responsáveis pela organização de três conferências livres para garantir um canal de escuta e participação dos imigrantes na proposição de ações para o Plano Estadual. A primeira, de alcance estadual, foi realizada em parceria com as Cátedras da PUC Minas e da UFMG e alcançou participação de imigrantes do Estado mineiro. As outras duas, de alcance regional, buscou a participação de imigrantes residentes no Triângulo Mineiro. Também participamos dos debates em torno do projeto de lei 3200/2021, ainda em discussão na Câmara Estadual.
Na cidade de Uberlândia, trabalhamos em conjunto com as organizações da sociedade civil locais para a sensibilização do poder municipal e dos vereadores locais. Neste ano de 2023 logramos demonstrar a relevância de uma política local e o gabinete do vereador Anderson Lima passou a trabalhar em um texto base. Passamos a contribuir com pesquisas sobre o panorama nacional, estadual e municipal de publicas públicas, compartilhamos informações sobre boas práticas e intermediamos o contato dos responsáveis pelo texto base do projeto com espertos da Agência da ONU para Refugiados. Acreditamos que o texto do projeto de Lei ainda pode ser aperfeiçoado, mas reconhecemos na iniciativa a preocupação em garantir o acesso a direitos da população imigrante, refugiada, apátrida e retornada. Além disso, merece comentário que o texto está em consonância com os projetos mais recentes que tiveram o apoio da Agência da ONU para refugiados.
Como a política proposta pretende garantir o acesso dos migrantes aos direitos e garantias sociais?
Marrielle Maia: A proposta da política municipal prevê a criação de um Plano Municipal de Política Pública. Se a ideia for aprovada, já no processo de formulação das políticas locais, as necessidades específicas dessa população de atenção poderão ser contempladas. Isso é importante porque a oferta de serviços públicos no Brasil ocorre de maneira descentralizada e territorializada.
Só para dar um exemplo, a política de assistência social, está organizada por meio do Sistema Único de Assistência Social que é cofinanciado e cogerido pela União, Estados e Municípios. Em Uberlândia, a assistência social possui um espaço para atendimento dos imigrantes junto da população em situação de rua. As características dos dois públicos são muito diversas. Os abrigos municipais por exemplo, não estão preparados para receber famílias de refugiados. Exemplos de políticas e serviços para ampliar o acesso aos direitos previstos em lei são ações de formação e capacitação de equipes para o atendimento, formação de mediadores culturais, oferta de serviços especializados de acolhimento institucional (casas de passagem), a criação de centros de referência, entre outras boas práticas.
Quais são as principais medidas propostas para combater a xenofobia e o racismo na cidade?
Marrielle Maia: O combate à xenofobia e ao racismo aparece como princípio e diretriz da proposta da política. Mas será no Plano Municipal de Políticas Públicas que poderão ser prospectadas ações nesse sentido. Merece, entretanto, atenção para duas medidas já explicitadas no projeto que é a criação de um canal de denúncias e a ênfase na formação de agentes públicos.
Pode explicar como a política visa promover a participação social dos migrantes e como será coordenada com a sociedade civil?
Marrielle Maia: O projeto de lei prevê duas formas de participação, a primeira, garante a participação dos imigrantes nas instâncias de gestão participativa, garantindo-lhes o direito de votar e ser votado nos Conselhos Municipais. A outra possibilidade, está na previsão da criação de um Comitê de Elaboração e Acompanhamento do Plano Municipal de Políticas Públicas para a População Migrante, Refugiada, Apátrida e Retornada com composição paritária entre poder público e sociedade civil. Neste aspecto específico, considero a relevância de uma previsão mais clara e que garanta a presença da população imigrante no Comitê.
Como enxerga a importância deste projeto para Uberlândia, considerando sua posição como a segunda maior cidade de Minas Gerais e uma população migrante considerável?
Marrielle Maia: O projeto prevê a necessidade de o governo municipal criar seu plano local de políticas públicas para a população de imigrantes, refugiados, apátridas e retornados. A importância central dessa medida é garantir que, independentemente do grupo político a frente do executivo, a população de imigrantes, refugiados, apátridas e refugiados figurarão no orçamento e nas ações para o acesso a direitos e a serviços no município. Uberlândia é a segunda maior cidade do Estado de Minas Gerais, uma das principais economias e um destino cada vez mais procurado por imigrantes internacionais. Adotar uma política de gestão e acolhimento é estratégica para que o município possa criar um ambiente propício ao aproveitamento e desenvolvimento das potencialidades dessas pessoas. São muitos estudos que demonstram que os imigrantes internacionais de todos os níveis de habilidade contribuem positivamente para a economia, quando integrados passam a pagar impostos, são consumidores e trazem novas perspectivas de inovação e empreendedorismo.
Quais desafios podem surgir na implementação desta política e como eles podem ser superados?
Marrielle Maia: Infelizmente o principal desafio para a implementação da política é a sensibilização da classe política local da necessidade dela. Durante os primeiros anos de atuação da Cátedra Sérgio Vieira de Mello não sentimos uma abertura para a temática, por várias razões. Primeiro em razão da crença equivocada que dar atenção para a questão da imigração é retirar a atenção dos problemas dos brasileiros. E como se ao promover, por exemplo, o emprego para a população imigrante, você está deixando desempregado um brasileiro. Ao mesmo tempo, quando as pessoas se deparam com imigrantes e seus filhos pedindo ajuda nas ruas, sentem-se incomodadas e cobram que elas sejam retiradas dali. Ora, um refugiado que foge de um conflito armado ou de uma situação generalizada de violação de direitos humanos chega no Brasil, literalmente sem nada - sem rede de apoio, sem recursos para sobreviver, sem conhecer as leis, a cultura e a língua do país, muitas vezes sem documentos. São pessoas que precisam reconstruir suas vidas e, para isso, precisam ser acolhidas e integradas de forma adequada na nossa sociedade. Para tanto é necessário que essa população figure nas políticas públicas nacionais, estaduais e municipais. Superada a dificuldade de aprovação da política – que precisará de maioria da Câmara dos Vereadores – o desafio central será o de convencer o poder executivo municipal da relevância de estabelecer uma estratégia que possa potencializar e otimizar a atuação pública em articulação com o governo estadual, federal, mas especialmente com as redes regionais e locais que visam o acolhimento e a integração local.